A pesquisa biomédica na França e no Brasil: análise de diferenças e questões éticas importantes

Authors

  • Hervé Moizan Rouen University Hospital, Department of Odontology, Rouen

DOI:

https://doi.org/10.5020/18061230.2016.p145

Abstract

À primeira vista, Brasil e França parecem bem distantes um do outro, mas no mapa, eles não estão separados pelo Oceano Atlântico, mas sim pelo Rio Oiapoque, localizado entre o estado do Amapá e a Guiana Francesa (território ultramarino francês), criando uma fronteira internacional de 730 km de distância. Se a distância de fato existe, torna-se bem diferente quando analisamos algumas similaridades no campo da pesquisa biomédica. A França é o maior país da Europa Ocidental e cobre 1/5 da União Européia. Além da França Metropolitana, o país possui territórios ultramarinos, remanescentes de seu passado colonial. Ao longo dos séculos a França conheceu vários sistemas políticos, desde a História Antiga até a República atual. De acordo com Ernest Renan, a nação francesa é mais uma ideologia do que uma realidade, primordialmente baseada no “desejo de viver juntos e no desejo de ressaltar o nosso legado”(1). Os trágicos atentados de novembro 2015 e todas as reações ao longo dos dias que se seguiram ilustram isso. O Brasil, descoberto pelo explorador português Pedro Alvares durante o século XVI, ocupa a metade da América do Sul e é cerca de 16 vezes maior que a França(2). Este gigante não olha para o passado, mas está sempre se movendo adiante. O conceito de nação é muito forte em todo o país, sendo evidenciado pelo entusiasmo dos jogadores de futebol vestindo a camisa auriverde nacional e os torcedores da Seleção Brasileira. Além disso, eles possuem uma forte cultura de empreendedorismo, definido por Stefan Zweig como o legado da era colonial. A pesquisa biomédica é uma atividade humana que visa dar soluções esperadas, e por vezes inesperadas também, para um grande e irresolúvel problema em um determinado momento. Esta pesquisa tem por base o conhecimento e vai questioná-lo com uma abordagem científica, dividida entre o que é conhecido hoje e o que será conhecido amanhã. Idealmente, a razão para adquirir um novo conhecimento é melhorar a saúde de um grupo de pessoas ou de toda a população. O pesquisador é um criador de conhecimento, mas também é um pioneiro, o que impõe uma responsabilidade ética. Durante os últimos 20 anos, a maneira como a pesquisa biomédica é feita tem mudado com a definição da “boa prática clínica”. A globalização da investigação biomédica é explicada pelo fato de que temos feito muitas melhorias até agora, mas precisamos sempre de mais e mais pacientes para provar a superioridade de um tratamento em relação a outro. Muitas patentes de “tratamentos populares” expiram rapidamente, assim a indústria farmacêutica acelera para descobrir novos tratamentos para substituí-los, o que explica a multiplicação dos ensaios clínicos. A indústria farmacêutica e os mercados emergentes partilham interesses comuns que os levam a trabalhar em conjunto aumentando o fenômeno da globalização. A boa prática clínica refere-se a normas partilhadas pela Europa, América do Norte, Japão e Austrália, sobre a qualidade ética e científica internacional que define a concepção, a conduta, o registro e a apresentação de dados durante os ensaios envolvendo seres humanos. Os mercados emergentes não são obrigados a seguir esses padrões, o que implica que parte das modalidades pode ser dissimulada. A International Conference on Harmonisation(3) (Conferência Internacional sobre Harmonização) elaborou recomendações relacionadas à pesquisa e ao desenvolvimento de novos medicamentos que visam claramente limitar os recursos humanos, animais e materiais para diminuir o tempo para os ensaios. A legislação brasileira de saúde respeita esses padrões internacionais e é a mais avançada na América Latina, juntamente com os sistemas argentino e mexicano. Além disso, muitos médicos brasileiros estudaram no exterior e respeitam estas regras. No entanto, se existem consensos a respeito das noções teóricas sobre bioética, ainda existem diferenças na forma como as políticas de investigação são aplicadas. Se o respeito a todas as normas internacionais sobre ética (Declaração de Helsinki 1964, Relatório de Belmont 1978, Diretrizes Éticas Internacionais para Pesquisas Biomédicas Envolvendo Seres Humanos e a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde – CNS) é exigido por cada revisão científica brasileira e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, surpreende o fato de que esta resolução, que visava proteger os pacientes, as instituições e o país, tenha sido recentemente (12/12/12) rejeitada(4). É fácil reconhecer a dignidade de princípio de uma comunidade científica inteira de um país, mas é mais difícil de definir as modalidades da sua implementação na fronteira da vida (nascimento e morte) quando essas nações possuem diferenças culturais, econômicas, históricas e sociais fundamentais. Os exemplos a seguir ilustram os vários desafios éticos. Geopolítica O Brasil tem muitas vantagens que favorecem o desenvolvimento da pesquisa biomédica em seu território. A sua localização no hemisfério sul com estações invertidas em relação à Europa permite a realização de ensaios ao longo de todo o ano. A sua proximidade com os EUA e as empresas farmacêuticas canadenses, em comparação com a Ásia, é mais conveniente para a logística. A incidência de muitas doenças é bastante semelhante com a Europa e a América do Norte, com uma alta incidência de doenças cardiovasculares (42% dos homens com 65 anos ou mais), diabetes tipo 2 (6,9 milhões de adultos), e câncer de mama e próstata. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA registra todos os ensaios clínicos e mostra que o câncer de mama e diabetes tipo 2 são as duas patologias mais estudadas, sendo 20,5% e 26% respectivamente. Esses dados apontam para o problema das doenças negligenciadas ou consideradas “órfãs” pelas empresas farmacêuticas as quais têm um impacto local sobre a mortalidade ou a economia, como a dengue ou a doença de Chagas(5). Economia O Brasil tem apresentado um crescimento econômico contínuo de 4% nos últimos dez anos. Este desenvolvimento económico tem reduzido seriamente desde 2011. Sua força motriz é o seu consumo interno – com 200 milhões de habitantes – juntamente com vantagens de seus enormes recursos vegetais e minerais. No entanto, o Brasil ocupa o 120º lugar de 189 no ranking do Banco Mundial por sua facilidade de empreendedorismo. Na pesquisa biomédica, os países são classificados em relação a sua capacidade de atratividade de 1 a 10. O Brasil pontua 5,26, logo atrás da China(6,10). Segundo o economista do Goldman Sachs, Jim O’Neill(7), o Brasil é um dos cinco países que formam o BRICS, junto com a Rússia, Índia, China e África do Sul. Esses países representam as cinco principais economias nacionais emergentes. Seus mercados devem crescer até que a soma do seu PIB atinja a de um dos países do G6 (Japão, EUA, Reino Unido, França, Alemanha, Itália) por volta de 2040. Essa noção ajuda os investigadores/ investidores a encontrar os países que oferecem as melhores oportunidades. O Brasil é definitivamente um deles; o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), uma pontuação composta por indicadores per capita de expectativa de vida, educação e renda é 79/187 versus 20/187 na França. Este índice foi criado para destacar que as pessoas e as suas capacidades devem ser os principais indicadores utilizados para avaliar o potencial de crescimento de um país e não apenas critérios económicos. Ele pode ser usado para questionar as escolhas políticas. As razões pelas quais o Brasil é frequentemente requisitado para os ensaios clínicos são explicadas pelos seguintes elementos. Um crescimento importante de seu mercado farmacêutico nos últimos anos, uma população altamente urbanizada com um fácil acesso à medicação devido a um generoso programa de saúde do governo, infraestruturas importantes nas grandes metrópoles (São Paulo, Rio de Janeiro) que recolhem a maior parte dos recursos, uma alta relevância na experiência clínica, uma parte importante da população nunca recebeu tratamento, o que seduz a indústria farmacêutica, os custos razoáveis para a pesquisa com pouca restrição regulatória, fácil recrutamento de pacientes, e uma transdisciplinaridade surpreendente. Cultura A expressão francesa “exception culturelle” (exceção cultural) designa especificidades francesas passadas ou atuais em comparação com outros países no campo cultural. Esta definição implica o orgulho, a pretensão e o sentimento de que a cultura francesa é superior às demais. Esta diversidade cultural está intimamente relacionada com a organização da sociedade. Na França, a solidariedade coletiva nacional é altamente desenvolvida para facilitar o acesso ao sistema de saúde. Algumas outras sociedades, como o Brasil, permitem mais importância para as comunidades familiares ou locais e um baixo investimento nacional no sistema de saúde. Desta forma, a decisão de uma mulher em participar de um ensaio clínico será tomada por um homem de sua família, seja o seu marido, seu pai ou seu irmão e não por si mesma. Essas diferenças culturais entre os nossos dois países explicam porque a pesquisa clínica sobre o embrião é proibida na França e permitida no Brasil desde a lei de Biossegurança (2005). Por outro lado, o aborto é proibido no Brasil e é permitido na França. O excesso de alguns investigadores associado à pressão de líderes de ensaios clínicos levou os “caçadores de corpo” a se estabelecerem nos mercados em desenvolvimento, perdendo a perspectiva do objetivo final de qualquer investigação biomédica, que deveria ser a melhoria das condições de vida para toda a comunidade humana. A complexidade do contexto real para a pesquisa biomédica – várias fontes financeiras, estudos multicêntricos, restrições regulatórias variáveis, ensaios de risco – deve alertar permanentemente o pesquisador para que este se torne capaz de aplicar uma ética baseada em responsabilidades mais do que convicções, como teorizado pelo sociólogo alemão Weber(9).

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Author Biography

Hervé Moizan, Rouen University Hospital, Department of Odontology, Rouen

Ancien assistant hospitalo-universitaire en chirurgie orale à l'UFR Odontologie de Nantes (1997-2000) Praticien hospitalier - Odontologiste des Hôpitaux depuis 2002 Spécialiste qualifié en Chirurgie Orale Responsable Unité Fonctionnelle Odontologie CHU Rouen depuis mai 2011 Membre titulaire de la Société Française de Chirurgie Orale Membre de la Conférence des Chefs de Service d'Odontologie des CHU Membre du Syndicat National des Odontologistes Hospitaliers Publics (SNOHP) Docteur en Sciences Paris 5, spécialité Ethique Médicale

References

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Published

2016-08-17

How to Cite

Moizan, H. (2016). A pesquisa biomédica na França e no Brasil: análise de diferenças e questões éticas importantes. Brazilian Journal in Health Promotion, 29(2), 145–152. https://doi.org/10.5020/18061230.2016.p145

Issue

Section

Editorial