Cultura religiosa e promoção de saúde: cuidado, prática, objeto
DOI:
https://doi.org/10.5020/18061230.2015.p149Resumo
Às margens da prática médica moderna, compelindo os próprios limites da ciência, e incansavelmente depondo os preceitos do discurso público, remanescentes funcionais da civilização cristã ainda continuam a oferecer cuidados aos desesperançados, a realizar cerimônias de cura para os incuráveis e a tutelar objetos de votiva devoção para os sofredores e necessitados. Esses serviços públicos passam amplamente despercebidos, embora garantam um mundo ordenado, estruturem a percepção e funcionem como âncoras ontológicas. Perdidas nas vagas e cientificamente despretensiosas noções de espiritualidade que dão sustentação a uma experiência metafísica mundial corriqueira e não especializada, e a despeito de sua imensa representatividade cultural, funcional, geográfica e performática, práticas católicas sacramentais voltadas para o alívio do sofrimento e promoção de estilos de vida saudáveis estão recebendo atenção meramente periférica na literatura científica(1), embora façam parte da realidade diária em grande parte da Europa e da América Latina contemporâneas. Ao escrever este editorial do Nordeste do Brasil, onde a prática religiosa tradicional tem sustentado gerações através das calamidades de secas intensas, escravidão, pobreza extrema, alta mortalidade infantil, organizações políticas falidas, e uma realidade econômica global adversa, é difícil subestimar o poder da experiência sacramental na sustentação de uma identidade cultural. Definiu-se o conceito de cuidado ao doente no contexto da experiência religiosa do Nordeste do Brasil, o qual é historicamente relevante para a promoção de saúde. Até o surgimento da assistência à saúde em nível nacional, no final do século XIX, foi basicamente a ordem dos frades franciscanos que se encarregou de promover vidas saudáveis na região. O conceito católico de cuidar que orientou seus esforços estrutura três princípios da realidade procedimental: a realidade psicológica da transferência ao indivíduo sob os cuidados de outrem (cuidado/caridade), a prática performática de sacramentos religiosos como a unção do enfermo ou as devoções ex-voto, e o objeto físico representativo do sintoma ou do instrumento da intervenção médica ou divina. A primeira encíclica do Papa Benedito(2), “Deus Carita Est”, colocou a noção e a prática de caritas, significando amor, virtude e caridade ou graça, no centro da justiça social e do cuidado - à saúde - social. Ainda assim, o domínio público no qual a ação comunicativa(3) em favor da promoção de saúde e da equidade no cuidar pode ser desenvolvida e realizada é a moderna massa tecnologicamente engendrada, a qual é bastante diferente da congregação religiosa tradicional e representa um complexo sistema não submisso às burocracias governamentais e estruturas políticas. Nossa tese é de que o modelo de saúde pública - formatado pela massa - somente poderá contar com uma medida de sua eficiência, através da calibração de intervenções médicas e jurídicas com a realidade processual contratual ou votiva, bem como com a autenticidade psicológica-libidinal do cuidar depositado em artefatos culturais, enquanto objetos de relação e comunicação Hannah Arendt(4) foi a primeira filósofa do século XX a chamar atenção para a realidade social da caritas cristã, um passo arrojado, dadas as dimensões de massa do grupo sobre o qual ela conjecturou. Ela também documentou a oposição binária entre amor sexual, carnal, e o amor de criatura, calcado na obrigação moral, que dominou o pensamento social durante as guerras mundiais(4). Em oposição a Arendt e a todos os sociólogos de massa, acreditase( 2) também que a sexualidade feminina pactuada numa relação de aliança seja uma parte vital do conceito de amor de Deus, de fato sua verdadeira âncora na realidade material, o que tem importantes implicações na promoção de saúde da família, no delineamento dos espaços públicos, na saúde dos oikos individuais e dos grupos econômicos. Em um recente comentário(5) sobre uma mostra evolucionista em comemoração a evidências, ainda que vagas e imprecisas, de uma pretensa sobrevivência de realizações neandertais, o autor lamentou a omissão do conhecimento médico a partir da homenagem feita pela mostra ao progresso científico do homo sapiens invocando a representação do artista Gustav Klimt do precário espaço ocupado pela moderna medicina no amplo panorama histórico, a saber, a imagem, agora já perdida, da antiga deusa Hygeia ladeada pelas figuras alegóricas da Doença e da Morte. A interpretação intuitiva do artista não apenas expõe a realidade na qual as ciências médicas são convocadas para realizar suas obrigações, ou seja, a finitude e o sofrimento, mas também coloca lado a lado as duas origens distintas da moderna medicina, lastimavelmente ainda irreconciliáveis: a racionalidade grecoromana e a cultura escritural-sacramental enraizada na noção cristã de caritas, que organizaram o espaço operacional do hospital moderno e do moderno asilo, as duas evoluções históricas fundamentais que deram origem aos sistemas contemporâneos de bem-estar em saúde e de promoção de saúde. As tradições da prática votiva, especialmente o rito sagrado de entregar um ex-voto em pagamento pela cura e em cumprimento a uma promessa contraída e alcançada no reino “metafísico” da linguagem e da mídia representacional, não são tanto ideias protótipas ou protofenômenos de bem-estar e promoção, mas do ato linguístico performático da ontologização que sustenta a existência do que se denominou Fuersorge(6) (termo alemão para “bem-estar”, mas também para “cuidado”, como o termo caritas, segundo Arendt, e a organização do futuro). A atividade de promoção recai sob o paradigma da Fuersorge como o mais importante princípio ontológico estruturante da realidade social do sistema de bem-estar de valores e do pensamento científico, mas Fuersorge opôs-se ao princípio político e à governança estatal(6). Nesta obra, constitui um termo muito mais rico, referindo-se ao nascimento poético-cultural do futuro(6). De forma similar, a realidade da linguagem, prática e artefatos católicos, embora tenha dado origem ao complexo científico tecnológico da indústria, medicina e burocracias jurídico-estatais modernas, diferencia-se das estruturas racionais que tornou possível, na medida em que se mantém irredutível a mero meio para um fim. Como meio para um fim, o complexo científico tecnológico almeja o total controle do futuro dos domínios biopolíticos1 e materiais. Em uma reflexão sobre tecnologia(7), por outro lado, segue os vestígios de sua existência no mundo, em um marcante afastamento da concepção padrão desta como mera instrumentalidade, ou seja, como meio para um fim, através da revelação do significado e potencialidade ocultos nas formações linguísticas poéticas e culturais que não apenas refletem seu horizonte fenomenológico, mas estruturam sua presença. Embora a experiência religiosa permaneça como um ponto cego, essa análise continua ainda prescrita e inscrita em uma linguagem profundamente alterada pelos artefatos materiais de uma história religiosa textual e sacramental no contexto alemão(7). Escavar a genealogia histórico-religiosa de nossas noções contemporâneas de cuidado, seu objeto e prática, e os princípios organizacionais da esfera pública que ela estrutura é um lado da tarefa que este volume estabelece para si. O outro lado da questão é prático e tem o objetivo de começar a concentrar um discurso acadêmico que pode dar suporte, valorizar e salvaguardar as práticas religiosas tradicionais hoje, não como meio para um fim, mas como estruturas culturais vitais para o delineamento do espaço público e a promoção da saúde, e como um ponto de avaliação e equilíbrio para estruturas políticas que tendem a monopolizar seu domínio sobre a esfera pública. O objetivo é harmonizar as duas origens distintas e, até agora, em grande parte, antagônicas do pensamento contemporâneo científico e da promoção da saúde, da tradição racional greco-germânica, apoiada pela física, metafísica e fenomenologia, e da tradição sacramental originalmente hebraico-católica, que organiza as âncoras ontológicas da caritas. Este periódico, a Revista Brasileira em Promoção da Saúde, está buscando o desenvolvimento de paradigmas teóricos que possam apoiar a investigação na intersecção entre a promoção da saúde e a prática religiosa. Estamos particularmente interessados em modelos de colaboração entre instituições religiosas e de saúde voltadas para a pesquisa e o esboço de espaços públicos virtuais e físicos marcados e estruturados por noções de saúde, doença e representações anatômicas individuais.Downloads
Referências
Holmes, S. Beholden: Religion, Global Health, and Human Rights. Oxford 2015.
Papst Benedikt XVI. Enzyklika: Deus Carita Est (2005). http://w2.vatican.va/content/benedictxvi/de/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20051225_deus-caritas-est.html
Habermas, J. Theory of Communicative Action. Tr. Thomas McCarthy. Beacon 1985.
Arendt, H. Love and St. Augustine (1929). Eds. J. V. Scott and J. C. Stark. Chicago UP 1996.
Horton, R. Offline: Medicine's precarious place in the history of humanity (2015). The Lancet, Vol. 386, Issue 9996, 840.
Heidegger, M. The Question Concerning Technology. Trans. V. Lovitt. In: The Question Concerning Technology and Other Essays. Harper 1969, 3-35.
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